sábado, março 28, 2009

Dicas do Pires

Quando não cantar um mi bemol superagudo é uma lição de vida.

“vincEEEEEEEEEEEEErò” ou “VINceRÒ”?

Aí sim, seria um tumulto!


28 de março de 2009 |

MÚSICA | CELSO LOUREIRO CHAVES *

  • Pois numa dessas transmissões de ópera em cinema que ocorrem por aqui, a de Lucia di Lamermoor, a soprano Anna Netrebko deixou de cantar um mi bemol superagudo, e amadores e aficionados dispararam a protestar como se estivessem diante de uma infâmia, uma afronta. Ora, mas que importância tem um mi bemol para a solução da crise econômica ou a conservação dos recursos hídricos? Absolutamente nenhuma. Porém no microclima da ópera, com suas leis que desafiam a lógica, o prestígio ou a derrota de um cantor se apoia nessas pequenas trivialidades, para nem dizer dos cachês milionários que vêm de um agudo bem dado. Antes de jogar pedra na Geni, no entanto, talvez seja melhor examinar a questão um pouquinho mais a fundo. Se sumiu um mi bemol é urgente encontrá-lo! Por onde andaria? Por qualquer lugar entre a Patagônia e o Alasca, mas não na música de Donizetti, o compositor de Luciadi Lamermoor, que ali não há mi bemóis superagudos.

    Tradições operísticas são como algumas de nossas tradições gauchescas – nem bem criadas já parecem ter sido esculpidas em pedra desde sempre e ai de quem as afrontar. Pois se um dia uma cantora resolveu alterar a música de Donizetti e colocar um agudo onde agudo não havia, ai de quem se atreva a não repetir o feito e deixe de soltar a voz à estratosfera. Dentro do espírito de “o que você faz eu faço melhor”, não há cantora que se atreva a contrariar a tradição de transgredir o texto do compositor para atingir o efeito atlético, a pirueta circense. A não ser que esse atrevimento parta de uma cantora que tenha prestígio suficiente para retornar ao texto original, mesmo que isso lhe custe o muxoxo ocasional de algum amador mais afoito. Esse é o caso da soprano de agora.

    Houve um caso semelhante com o tenor Placido Domingo. Uma vez ele resolveu gravar o final opcional que Giusppe Verdi compôs para a romanza Celeste Aida (da ópera chamada obviamente Aida). O compositor imaginou que se algum tenor achasse desconfortável sustentar o último si agudo da melodia poderia haver alguma outra opção, e seria melhor que ele mesmo, Verdi, o fizesse antes que algum desavisado desfigurasse a partitura. Um compasso e outro e a opção para um final mais amigável veio a tempo de uma apresentação em Parma em 1872. No entanto, desde então não há cantor que ouse cantá-lo, com pavor de ser acusado de ter pouca técnica. Mas num estágio da carreira em que já não havia nada mais a provar, Placido Domingo enfrentou a versão “facilitada”“ da Celeste Aida como se fosse uma pegadinha: “Vejam como seria a música de Verdi cantada por alguém que não fosse eu...” E houve quem caísse na armadilha. Muito já ouvi: “Ih, o Domingo não tem mais voz, bom mesmo é o Pavarotti!”

    A Lucia di Lamermoor da polêmica era uma apresentação ao vivo e aí entra em cena toda uma outra série de considerações. Basta ver (e ouvir) novamente as circunstâncias em que se passou o sumiço do mi bemol – a apresentação de Anna Netrebko no Met nova-iorquino se encontra facil no YouTube. O que se vê é o esforço descomunal da cantora para imprimir verdade cênica a uma improvável heroína imaginada em 1819 por Sir Walter Scott e colocada em música dentro das regras estritas do romantismo nascente dos anos 1830. A tarefa não é pequena, pois aproximar o palco de hoje das convenções antigas de quase 200 anos requer muita sutileza para que não se caia nem no esquemático e nem no exagerado. Se assistir a ópera requer a suspensão da capacidade de descrer, então as óperas de Donizetti exigem muito. E se não há cumplicidade palco e plateia, a frágil verdade se quebra.

    Minuto a minuto, o esforço para conquistar o realismo pauta a montagem polêmica, de uma ponta a outra da história que se quer contar. Então avancemos até o final da cena (a “cena da loucura”) onde deveria estar o mi bemol superagudo que Donizetti não escreveu. Fica óbvio que, se ali estivesse, o agudo deitaria a perder a verdade cênica dessa montagem, em contradição com tudo o que veio antes e, pior, sem a bênção do compositor. Na verdade, um superagudo naquele momento seria uma infâmia, uma afronta. Mas há amador de ópera que se interesse por verdade cênica? Há, e muitos. Mas para quem gosta mais de cantores do que de óperas, não há jeito: perdeu-se ali o valor do ingresso. E vejam que poderia ser bem pior. Imaginem se tivesse sido um tenor que decidisse cantar o que Puccini verdadeiramente escreveu no final da muito famosa Nessun Dorma e, ao invés de estender indefinidamente “vincEEEEEEEEEEEEErò”, cantasse simplesmente “VINceRÒ”? Aí sim, seria um tumulto! (ZH)

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